Como proteger a Infância e a adolescências no Mundo Digital? Referências Essenciais para Educadores
O estrondoso sucesso da série Adolescência, criada por Stephen Graham e Jack Thorne e exibida na Netflix, iluminou como nunca antes o urgente debate sobre as práticas digitais de crianças e adolescentes. A produção escancara, de forma dramática e contundente, como o ambiente digital pode afetar profundamente o desenvolvimento emocional, cognitivo e social dos jovens — e o quanto nós — educadores e famílias — ainda estamos pouco preparados para lidar com esses desafios, muitas vezes ignorados ou minimizados. Começamos a discutir este tema na live com nossa amiga e psicóloga familiar Caroline Wajss no Instagram da @ativaedu, que depois postamos no nosso youtube, onde você pode conferir na íntegra. Queremos aqui aprofundar algumas reflexões e trazer várias referências para educadores, mas também para pais
Um dos principais alertas que emergem do contexto da série é a necessidade de não deixarmos crianças e adolescentes sozinhos em nenhum tipo de rede social — seja em celulares, tablets ou mesmo na TV, hoje carregada de aplicativos com acesso a essas plataformas. Esse acesso irrestrito é potencializado pelo poder sem precedentes das chamadas big techs — gigantes da tecnologia como a Meta (Instagram, Facebook, WhatsApp), TikTok, Snapchat e mais recentemente a Discord, tida como a mais perigosa atualmente, por hospedar comunidades criminosas. Especialistas em saúde mental e desenvolvimento infantojuvenil recomendam fortemente a proibição total das redes sociais — incluindo WhatsApp — até, pelo menos, os 13 anos de idade. A partir dessa fase, o uso pode ser gradualmente introduzido, mas sempre com supervisão adulta e regras claras sobre tempo, conteúdo e forma de uso.
Diversos riscos estão associados ao uso precoce e desassistido das redes sociais. De modo geral, meninos tendem a ser expostos a conteúdos que estimulam comportamentos agressivos, misóginos, hiper sexualizados e baseados em lógicas de dominação. Já as meninas, por sua vez, são constantemente bombardeadas por padrões irreais de beleza, estilo de vida e consumo — como as rotinas de skin care, maquiagem e suplementação alimentar, frequentemente apresentadas como necessidades diárias inadiáveis. Essa cultura também incentiva a obsessão pela magreza, o culto ao corpo e a sexualização precoce.
Esses estímulos impactam não apenas a autoestima e o bem-estar emocional dos jovens, mas também interferem no desenvolvimento de competências fundamentais, como empatia, atenção, cognição, julgamento moral (noção do que é certo e errado) e percepção da realidade. As fronteiras entre o mundo virtual e o real tornam-se cada vez mais difusas, especialmente quando os adolescentes, imersos nas redes — e nos jogos online em particular —, passam a atribuir maior valor ao ambiente digital do que às interações presenciais e às relações humanas concretas, marcadas por vínculos, consequências e responsabilidades.
Do ponto de vista cognitivo, vídeos rápidos como apresentados em todas essas plataformas de redes sociais (os assim chamados “shorts”, presentes até mesmo memes de whatsapp, em mini vídeos do spotify ou em “templates” para capcut – aplicativo de edição de vídeos), tendem a ativar e reforçar circuitos de curta duração e a reforçar experiências de atenção fragmentada. Essas experiências em cérebros jovens, que estão ainda construindo os circuitos neuronais de aprendizagem elementares, dificulta o aprendizado de tarefas que envolvem a atenção sustentada, como a leitura de textos ou filmes longos e dificulta muito a aprendizagem da capacidade de análise e de correlação entre informações (interpretar texto e associar a gráficos e tabelas, por exemplo). Esse tipo de contexto para estudantes com algum tipo de transtorno de atenção ou dificuldade de aprendizagem (como dislexia, discalculia, disortografia) pode ser um fator de agravamento para a queda de participação e envolvimento com as atividades escolares.
Do ponto de vista social, casos graves envolvendo adolescentes em situações de ciberbullying, racismo, discursos de ódio, apologia à tortura animal, automutilação ou participação em desafios mortais têm se tornado frequentes. Entretanto, quando confrontados pela Justiça da Infância e Juventude, muitos jovens classificam esses atos como meras “brincadeiras”, revelando uma grave desconexão entre suas ações e a compreensão de suas consequências. A banalização de condutas lesivas no ambiente digital muitas vezes impede que o bullying virtual seja reconhecido em sua gravidade, o que agrava ainda mais os danos às vítimas.
Mais do que afetar os indivíduos diretamente envolvidos, portanto, esses comportamentos desencadeiam problemas sociais amplos, que dizem respeito a todos nós. A juíza Vanessa Cavalieri, responsável pela Vara da Infância e Juventude do município do Rio de Janeiro há mais de duas décadas, alerta para o papel das redes sociais como um novo espaço público — um ambiente em que se cruzam estranhos e perigos que podem ser tão ou mais intensos do que os encontrados nas ruas nas altas madrugadas.
Entre os impactos mais graves observados, destacam-se o cyberbullying, a distorção da autoimagem que pode levar a automutilações e tentativas de suicídio, os transtornos alimentares, o aliciamento por redes extremistas e, em casos extremos, a participação em atos criminosos coordenados ao lado de outros jovens.
Diante desse cenário alarmante, cabe a nós, educadores, assumir uma postura atenta, preventiva mas sobretudo acolhedora, embasada em estratégias sólidas de formação ética e emocional. Precisamos nos comprometer com uma educação digital crítica, capaz de orientar crianças e adolescentes a compreender os riscos, estabelecer limites e desenvolver relações mais saudáveis com a tecnologia e com os outros.
Por isso, reunimos aqui na Ativa Educação algumas referências fundamentais para quem atua com infância e juventude. São publicações, especialistas e iniciativas que ajudam a compreender melhor esse complexo cenário e a propor caminhos educativos mais seguros, afetivos e éticos — tanto em casa quanto na escola.
Nunca foi tão urgente promover práticas de mediação digital, criar regras de uso saudáveis em família e implementar, nas escolas, uma formação digital crítica, responsável e conectada à realidade dos nossos jovens. Ao mesmo tempo, alertam especialistas como o pediatra Daniel Becker e o psicólogo social Jonathan Haidt, precisamos batalhar por políticas públicas e pela regulamentação da internet: as big techs, como empresas que lucram mais do que qualquer outra com a disseminação de conteúdos extremistas nas redes sociais, precisam ser freadas e responsabilizadas por expor menores a esses materiais. Caso contrário, as famílias continuarão travando uma luta inglória e profundamente injusta.
Queremos acreditar que, com conhecimento, formação e resistência civil, vamos todos juntos construir essa rede de apoio, reflexão e ação para o nosso mundo contemporâneo.
Vamos às dicas!
1. Protocolo “Eu te Vejo” – Juíza Vanessa Cavalieri
A juíza Vanessa Cavalieri, especialista com mais de 20 anos de atuação na Vara da Infância e Adolescência do Rio de Janeiro, observou um crescimento significativo de crimes fomentados no ambiente digital envolvendo jovens das classes A e B após a pandemia. Ao investigar as origens desses comportamentos, identificou um fator recorrente e preocupante: a invisibilidade adolescente. Muitos desses jovens infratores haviam vivenciado, desde a infância, experiências profundas de discriminação ou solidão extrema.
A partir dessa constatação, Cavalieri desenvolveu ações socio-educativas para os criminosos e para as vítimas, bem como o protocolo “Eu te Vejo”, um recurso preventivo valioso voltado às escolas para que possam identificar sinais precoces de sofrimento psíquico em crianças e adolescentes, especialmente aqueles decorrentes de isolamento social ou bullying. Por exemplo,crianças frequentemente sozinhas no recreio ou que nunca são convidadas para festinhas no final de semana estão incluídas nessa lista. Essas vivências, quando não acolhidas ou reconhecidas, tornam-se terreno fértil para que crianças marcadas pela dor, quando na adolescência, se envolvam com comunidades virtuais perigosas — muitas delas encontradas em plataformas como o Discord, aplicativo inicialmente voltado para jogos, mas que tem abrigado grupos que promovem conteúdos extremamente nocivos e graves.
Essas comunidades virtuais incentivam práticas como sofrimento animal, participação em desafios autodestrutivos (como automutilação), indução à violência e até ataques filmados contra escolas. Muitos jovens relatam que entram, encontram amigos e depois se dão conta de que tudo o que ocorre ali é muito errado, mas são chantageados na tentativa de sair e, por isso, permanecem nas comunidades. Diante desse cenário, é fundamental que as instituições de ensino estejam preparadas para reconhecer esses sinais e atuar preventivamente, oferecendo não apenas acolhimento, mas também uma formação sócio emocional estruturada e contínua, capaz de fortalecer os vínculos, o senso de pertencimento e a construção de valores éticos entre os jovens.
Conheça a juíza Vanessa Cavalieri nessa live do #MECAoVivo | WEBINÁRIO – Adolescências no Mundo Digital e ouça a sua análise aqui, incrível episódio do podcast Fio da Meada de março de 2025.
2. Pesquisa sobre Masculinidades – Ismael dos Anjos
Ismael dos Anjos realizou uma pesquisa importante em parceria com o Consórcio de Observação Social da USP, ouvindo 41 mil jovens. A pesquisa revelou que apenas 1 em cada 10 jovens já discutiu abertamente sobre o significado de ser homem e as questões de masculinidade saudável. Para educadores, essa pesquisa é um alerta para a importância da criação de espaços seguros e de diálogo nas escolas, ajudando meninos a refletir sobre masculinidade saudável e prevenção da violência.
Confira Ismael dos Anjos nesse webinário do Ministério da Educação da primeira semana de abril de 2025: #MECAoVivo | WEBINÁRIO – Adolescências no Mundo Digital
3. Pediatra Daniel Becker
O pediatra Daniel Becker, especialista em desenvolvimento infantil, tem feito inúmeras contribuições analisando os efeitos das redes sociais em crianças e adolescentes. Reforça no Brasil a proposta do Movimento Desconecta, que visa retardar o acesso precoce de crianças aos celulares e às mídias sociais. Baseado nas pesquisas do psicólogo Jonathan Haidt, esse movimento orienta práticas de educação digital conscientes e equilibradas, evitando prejuízos ao desenvolvimento cognitivo, emocional e social. Confira palestras e dicas no perfil Pediatria Integral no Instagram.
4. Livro “A Geração Ansiosa” de Jonathan Haidt
Jonathan Haidt, psicólogo social de 60 anos, acredita que o smartphone é uma ameaça ao bem-estar mental das crianças. Em seu livro “A Geração Ansiosa: Como a Grande Reconfiguração da Infância Está Causando uma Epidemia de Doenças Mentais”, ele defende que o aumento da ansiedade e depressão entre adolescentes está diretamente ligado ao uso de smartphones e redes sociais.
Principais pontos discutidos por Haidt:
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- O problema fica evidente por volta de 2012-2013, quando a saúde mental dos adolescentes piorou de forma súbita e global, afetando especialmente as meninas. Antes disso, os indicadores estavam estáveis ou melhorando. Nesse período surgem as redes sociais Facebook (2006), Instagram(2010), Pinterest (2010), Snapchat(2011) e Tik Tok (2016).
- A “Grande Reconfiguração” da infância aconteceu quando crianças passaram a trocar celulares simples por smartphones com câmeras frontais, acesso a redes sociais e notificações constantes. Isso alterou a forma como se desenvolvem e interagem, impactando seu crescimento e amadurecimento sócio emocional.
- Diferença entre gerações: ao contrário da TV, que era consumida de forma social e passiva, os smartphones e redes sociais introduzem um consumo isolado e contínuo, com forte impacto psicológico — especialmente pela lógica de notificações e recompensas sociais digitais. A adolescência é um período crítico de reorganização cerebral. O uso intenso de redes durante essa fase pode causar efeitos duradouros, tornando a Geração Z mais ansiosa e fragilizada. No entanto, Haidt acredita que mudanças simples, como desativar notificações, podem melhorar significativamente o bem-estar.
- Impacto diferencial em meninas: redes como Instagram e Pinterest expõem meninas a comparações sociais constantes, afetando sua autoestima e promovendo uma cultura de performance e “gestão de marca pessoal”, ao invés de lazer ou socialização.
- Propostas de Haidt:
- Proibir smartphones antes do ensino médio
- Proibir redes sociais antes dos 16 anos.
- Aumentar a idade mínima legal para que adolescentes possam firmar contratos digitais e ceder seus dados (hoje fixada nos EUA em 13 anos).
- Crítica às Big Techs: segundo Haidt, as empresas não têm incentivo para proteger as crianças, pois as usam como produto — sua atenção é vendida a anunciantes. Ele propõe regulação governamental para corrigir essa falha de mercado.
- Mensagem final: proteger os jovens no mundo digital é tão essencial quanto garantir sua liberdade no mundo real. Haidt não é contra a tecnologia em si, mas contra o uso precoce e desregulado de ferramentas que podem impactar negativamente o desenvolvimento emocional e cognitivo.
Conheça Jonathan Haidt em sua participação no Roda Viva da TV Cultura de 09/12/2024.
5. Guia para Educação Midiática para educadores da Educamídia
O guia aborda a importância do letramento midiático na escola, destacando como notícias falsas circulam nas redes sociais e aplicativos, confundindo adultos, jovens e crianças. O letramento midiático vai além da simples interpretação textual, envolvendo habilidades para identificar diferentes formatos como fake news, correntes alarmistas no WhatsApp, sátiras e caça-cliques. O guia traz recursos práticos para o papel fundamental da escola em ensinar alunos a analisar criticamente as informações que consomem, desenvolver senso crítico, compreender o papel das mídias e interagir de forma consciente no ambiente digital.
6. Manual para quem não desgruda de telas
Carol Arcari, Flavia Scherner e Nay Macedo debatem em live o lançamento do livro “Manual para quem não desgruda de telas” de Carol Arcari. Destinado a crianças e adolescentes, o livro explica a dinâmica da internet, legislações importantes, vícios digitais, além de abordar educação sexual. Pode ser uma excelente ferramenta para pais e educadores utilizarem na mediação de conversas sobre práticas digitais. Traz cartaz para estabelecer combinados para a família afixar na geladeira.
7. Guia sobre Uso de Telas – MEC/UNESCO
Aqui um resumo publicado no perfil de Daniel Becker.
O documento “Crianças, Adolescentes e Telas: Guia sobre Usos de Dispositivos Digitais” oferece uma ampla gama de orientações para que escolas e famílias possam gerenciar o uso de telas de maneira mais eficaz. O guia inclui sugestões de práticas que podem ser adotadas tanto no ambiente familiar quanto no escolar, como a mediação familiar ativa, a observação rigorosa da classificação indicativa, o estabelecimento de limites para o uso de smartphones e a conscientização sobre os riscos associados ao uso excessivo ou inadequado de dispositivos digitais, que incluem desde problemas de visão e atrasos no crescimento até questões mais sérias como cyberbullying, ansiedade, automutilação e outros transtornos emocionais. Além disso, o documento reúne e apresenta as melhores práticas para promover o letramento digital e midiático.
O Movimento Desconecta reúne pais e mães que defendem o uso equilibrado da tecnologia e propõe adiar o acesso de crianças a smartphones até os 14 anos e a redes sociais até os 16, para proteger o desenvolvimento infantil e adolescente. De forma apartidária e sem fins lucrativos, o movimento busca criar acordos coletivos entre famílias nas escolas, reduzindo a pressão social. Inspirado nas recomendações de Jonathan Haidt, defende quatro medidas principais: uso apenas de celulares básicos antes do ensino médio, proibição de redes sociais antes dos 16 anos, escolas livres de celulares e o incentivo ao brincar sem supervisão para fortalecer habilidades sociais. No site divulgam manifesto e protocolos para que pais de cada escola ou comunidade inicie o movimento, angariando mais participantes para esse pacto coletivo.