Contexto
Os currículos escolares brasileiros normalmente são ordenados segundo seriação anual e são focados mais no domínio de conteúdos disciplinares fragmentados do que em competências e habilidades transversais ou interdisciplinares. O Brasil vive, agora, o desafio de implantação da nova Base Nacional Comum Curricular, isto é, a necessidade de reescrita de currículos que contemplem competências, campos de experiências e direitos de aprendizagem comuns a todo país porém contextualizados (“parte diversificada do currículo”) segundo as dinâmicas e características do território de cada região e de cada escola (identificadas e expressas em seu PPP – Projeto Político Pedagógico).
Objetivo
O Projeto Floresta do Conhecimento é uma proposta de co-criação e escrita coletiva, participativa e “mão na massa” nas escolas brasileiras para a implementação de currículos baseados nos 4 “P”s da aprendizagem criativa: Projetos, Pares, Paixão e Pensar Brincando. (RESNICK, 2017). O projeto combina a construção participativa da matriz curricular de redes/escolas por meio da “Mandala dos Saberes” proposta pelo Centro de Referências em Educação Integral/Na Prática (CREI, 2017) com a proposta teórico-prática das “Árvores do Conhecimento” de Pierre Lévy e Michel Authier (1992).
Trata-se de uma abordagem para a gestão colaborativa e criativa do conhecimento (SINGER, 2009) que permite a seleção e a visualização (mapeamento) de objetivos de aprendizagem (currículo), saberes do território (linguagens, procedimentos, atividades e valores da cultura da comunidade) e competências/habilidades (saber-fazer) de cada sujeito educativo (professores/alunos/pais/colaboradores).
Fundamentos: mandalas e árvores
A Mandala dos Saberes (CREI, 2016) é uma metodologia-jogo que permite articular as dimensões fundantes do currículo: o “por que”, o “o que” e o “como” ensinar. A mandala permite mapear em anéis concêntricos e articulados as múltiplas dimensões do sujeito na concepção de educação para o desenvolvimento integral (intelectual, emocional, simbólica, social e física), os direitos de aprendizagem (da BNCC e dos ODS – Objetivos do Desenvolvimento Sustentável-, definidos pela ONU/UNESCO/UNICEF), as etapas da aprendizagem (educação infantil, educação fundamental, ensino médio e EJA), as áreas do conhecimento propostos pela BNCC (Ciências humanas, Ciências da Natureza, Linguagem, Matemática e Ensino Religioso), os saberes do território (brincadeiras, hábitos de alimentação, vestuário, moradia, festas, expressão religiosa, linguagens, mundo do trabalho, características socioambientais etc.) e as estratégias metodológicas que fundamentam o currículo contemporâneo (experimentação, personalização, transversalidade e participação).
As Árvores do Conhecimento (ADC) são, a um só tempo, uma abordagem, uma ferramenta e um produto vivo que expressa o espaço/arranjo dos saberes em uma comunidade de aprendizagem e a identidade (como um saber-fazer) de cada sujeito nesta comunidade. O tronco representa os conhecimentos/atividades mais difundidos na comunidade. Os galhos, as especializações e as folhas as competências ou atividades ainda mais especializadas de alguns indivíduos. O mapeamento permite visualizar as competências/atividades que estão em abundância e as que faltam na comunidade de aprendizagem, bem como os indivíduos que podem aportar e difundir novos conhecimentos/atividades. Assim, ela permite criar um processo de avaliação formativa em que emerge um currículo vivo, no qual se torna visível a identidade e as capacidades da comunidade e de cada sujeito, promovendo, assim o fortalecimento da auto-estima (todo mundo sabe ou sabe fazer alguma coisa) e troca de saberes/conhecimentos entre esses indivíduos/grupos (todos podem aprender algo com os outros).
Pierre Lévy e Michel Authier desenvolveram a ADC como uma proposta conceitual que norteou a reforma do ensino universitário francês e, em seguida, a lançaram como um software privado utilizado por muitos anos em organizações públicas e privadas. Authier hoje trabalha em uma versão de software livre para redifundir as ADC. Porém, a ideia e o processo de construção das ADC podem ser empreendidos em qualquer instituição ou escola por meio de uma dinâmica colaborativa em grupos (normalmente operacionalizada com post-its). Cada turma escolar ou mesmo cada escola pode construir sua árvore (ver COLLOT; CHANCEREL, 2018; SCATE Project, 2006).
Florestas: um mesmo solo, muitas árvores
Se a Mandala dos Saberes evidencia o “por que”, o “o que” e o “como” ensinar (competências, habilidades como objetivos de ensino), as Árvores do Conhecimento são uma ferramenta e uma abordagem para o “por que”, o “o que” e o “como” avaliar o que se quer ensinar (competências e habilidades como direitos de aprendizagem). A ADC permite novos arranjos e desenhos seja do currículo formal, seja do currículo “dos saberes do território”, em escalas de proficiência (progressão) de cada competência/atividade. Com isso, permite a personalização do currículo em itinerários formativos de cada estudante (como trilhas ou portfolios materializáveis no registro do próprio desenho da árvore – tarefa evidentemente mais fácil em cibertexto, com a ADC em software). Desse modo, liberta-se o desenho do currículo da rigidez da seriação anual e torna-se efetivamente visível, em primeiro plano, as capacidade e procedimentos associados a cada “conteúdo” e a cada estudante (as competências ou o “saber fazer” em atividades contextualizadas).
Se a construção da Mandala dos Saberes materializa o “solo” para a relação de ensino-aprendizagem na escola e no território, as Árvores do Conhecimento materializam (como avaliação formativa e performativa) as competências e habilidades dos sujeitos (professores, estudantes, pais, parceiros etc). Ao articular ambas abordagens como estratégias para a co-criação de currículo (o “por que”, “o que”, “como” ensinar e avaliar na educação para o desenvolvimento integral), o projeto Floresta dos Saberes se propõe como uma metodologia de aprendizagem profunda e significativa. Trata-se de um processo criativo e lúdico de metacognição, auto avaliação e avaliação por pares que torna visível competências, habilidades e atitudes que já existem em uma escola e aquelas que precisam ser desenvolvidas.
Nesse sentido, o projeto fundamenta e operacionaliza a articulação de dois grandes princípios pedagógicos:
1) o “agency by design” (“protagonismo pelo design”) como forma de tornar o pensamento e a aprendizagem visíveis (ProjectZero, 2018; CLAPP et al 2016; RITCHHART et al 2011), integrando o ato de conhecer e o de saber-fazer ao auto-conhecimento e ao produto do conhecimento;
2) Conectar o currículo escolar ao desenvolvimento de competências para a vida e à investigação de fenômenos reais, fortalecendo a composição de um território educativo intersetorial para além dos muros da escola, envolvendo múltiplos sujeitos na educação integral. Como diria Mitchel Resnick (2017) retomando a máxima de Seymour Papert: na experiência de aprendizagem criativa, as escolas devem ter “chão baixo, teto alto e paredes largas”, garantindo para todos e cada um o direito de aprender, imaginar, experimentar, compartilhar e ter novas ideias, experiências, investigações, invenções e assim por diante, em uma espiral crescente de experiências de aprendizagem sentido compartilhado (lifelong kindergarten learning).
Em suma, o projeto Florestas de Saberes se propõe a facilitar a construção de currículos contextualizados e baseados em comunidades de aprendizagem: escola e território educativo. Por meio da co-criação de mandalas e árvores, traduz objetivos de orientações curriculares gerais (BNCC, ODS, Orientações estaduais ou municipais) como desenhos “autorais”, materializadas nos sujeitos, em seus saberes e competências. Com base nessa materialização, os 4 “Ps” da aprendizagem criativa podem, então, mais facilmente se tornar o foco das ações pedagógicas: organizar projetos personalizados (individuais ou em “colaboratório”), fomentar o trabalho em pares com base em critérios objetivos (evidenciados na mandala ou na árvore), tornar visível e compartilhável as paixões de cada sujeito e, assim, permitir que cada um conheça e se reconheça em um processo de “pensar brincando” com suas próprias competências e atividades no contexto de seu território educativo.
Metodologia
a) Identificar o contexto, o objetivo e os envolvidos na comunidade de aprendizagem para uma dessas duas ações iniciais:
- Desenvolver um processo participativo de levantamento dos objetivos de ensino e aprendizagem para a construção da matriz curricular de uma rede de ensino;
- Elaborar a construção de currículos baseados na escola/em comunidades de aprendizagem com base em uma matriz existente;
b) planejar e dividir o trabalho em duas grandes ações: 1) a co-construção da Mandala de Saberes e 2) a co-construção das Árvores do Conhecimento (por turmas ou escolas/comunidades de aprendizagem).
I. MANDALA DOS SABERES
O Centro de Referências em Educação Integral (CREI) propõe a construção da Mandala dos Saberes a partir da identificação dos objetivos de formação do Sujeito da Educação Integral (o centro da mandala e o objetivo do desenvolvimento integral). Todo o passo a passo de confecção da mandala foi sistematizado pelo CREI e encontra-se disponível em: <Jogo da Mandala>.
A base do processo está em concretizar que, para que ocorra o desenvolvimento integral de cada sujeito – de todos e de cada estudante-, é necessário ampliar o território educativo para além da escola e diversificar as estratégias metodológicas e socioeducativas para que atendam aos princípios de equidade, inclusão e contemporaneidade. Assim, de acordo com seu contexto, a comunidade de aprendizagem deve escolher suas camadas de articulação (cartolinas coloridas) e representar: a) multidimensionalidade de desenvolvimento do sujeito (intelectual/cognitiva, emocional, simbólica/cultural, física e social); b) etapas da educação básica enfocada; c) áreas do conhecimento envolvidas; d) os temas geradores ou saberes do território e e) estratégias metodológicas.
Tempo mínimo: 4 horas
Público: principalmente gestores e educadores (professores, pais, voluntários, parceiros); Pode também ser feita para e com estudantes.
Materiais: para cada mandala são necessárias 6 cartolinas de cores diferentes, cola, canetinhas, 2 folhas de papel A4 cortadas em tirinhas ( cerca de 15 x 3cm).
Modo de fazer: seguir o passo a passo disponível no link: em: <Jogo Mandala dos Saberes>.
II. ÁRVORES DO CONHECIMENTO
Tempo mínimo: 4 horas
Público: Todos os sujeitos da comunidade de aprendizagem e parceiros do território educativo.
Materiais: na ausência do software, as árvores podem ser montadas em papel (post-its outra forma de colagem de papéis coloridos em cartolinas ou craft).
Modo de fazer: não há uma “receita pronta” para a montagem das ADC.
Um dos objetivos do projeto Floresta dos Saberes é propor um modelo de desenvolvimento metodológico das ADC nas escolas brasileiras como forma de currículo formal das competências para a vida: a) para a gestão e avaliação do conhecimento da equipe docente e dos estudantes por parte dos professores; b) para o auto-conhecimento, auto-formação, formação em pares e (auto) avaliação dos estudantes; c) para mapear e ampliar a comunidade de aprendizagem e envolver competências e habilidades com atividades e parceiros no território.
O primeiro passo é definir o objetivo da árvore: qual enfoque proceder?
a) diagnóstico com reforço positivo dos saberes/atividades do grupo/da comunidade de aprendizagem;
b) estabelecer novas práticas de aprendizagem;
c) avaliar escalas de proficiência, ou seja, quanto determinadas competências e habilidades postuladas pelo currículo são de domínio (rudimentar, básico, avançado) na comunidade de aprendizagem.
O segundo passo, é definir uma linguagem comum e a forma de escrita: ações/verbos ou descrição de atividades (saber fazer). “A natureza ou o tamanho dos elementos mapeados está longe de ser [sempre] idêntico e fácil de determinar. Podem ser unidades semânticas (parágrafos, palavras ou frases) em blocos identificados (capítulos, páginas web, textos e documentos) ou abstrações mais ou menos fáceis de definir ou demonstrar (idéias, conceitos, aprendizado, conhecimento e habilidades). Para dar um exemplo sobre a construção de uma árvore de notas heurísticas, a regra é determinar se a compreensão de um parágrafo [uma afirmação em um post it] exige que o parágrafo anterior [afirmação no post it anterior] seja entendido ou não. Se sim, ele continua no mesmo ramo. Se não, um sobe um (ou vários) níveis e cria um novo ramo (no nível certo).” (SCATE Project, 2006: p.46).
Assim, de acordo com o público/objetivo, deve-se definir um campo de linguagem comum e um procedimento de reconhecimento/mapeamento. Para identificar os conhecimentos prévios dos e desenhar um vocabulário de grupo, pode-se utilizar técnicas de brainstorming e ideação de design thinking, o método chamado de “metaplan”, sistematizado por algumas abordagens em marketing e team building ou mesmo a prática colaborativa do world café sistematizada por Juanita Brown e David Isaacs.
O terceiro passo é começar o mapeamento propriamente dito e a forma de “avaliação” ou validação das afirmações: basta dizer que você conhece ou sabe fazer algo para adicionar seu saber à árvore? Ou é preciso haver uma “avaliação performativa” na qual se demonstre o domínio da competência ou habilidade? Em função de sua composição e objetivos o grupo deve escolher essa estratégia. O mapeamento em si pode ser feito do seguinte modo: a) definição da linguagem e dos campos de saber/experiência; b) exercício em pares para mapeamento inicial; c) auto-avaliação/identificação de cada um; c) co-construção coletiva da árvore do grupo; d) co-construção da árvore da comunidade de aprendizagem.
O quarto passo é ler a árvore e utilizá-la como instrumento de planejamento, ou seja, desenvolver trilhas de aprendizagem mais personalizadas para cada estudante de acordo o que ele já sabe e o que ele precisa desenvolver.
Registro permanente e atualização: é importante construir a árvore em um mural colaborativo e revisitá-la de tempos em tempos, ampliando-a. De preferência, mantê-la registrada também em meio digital ou cibertexto, usando softwares abertos que constroem mapas conceituais, como o freemind, ou murais digitais colaborativos que permite registro de fotos, videos e textos, como o padlet.
Referências Bibliográficas
AUTHIER, Michel; LÉVY, Pierre; SERRES, Michel. As árvores do conhecimento. São Paulo: Editora Escuta, 1998.
CREI – CENTRO DE REFERÊNCIAS EM EDUCAÇÃO INTEGRAL. “Educação Integral: Na Prática”, 2017. Disponível em: <http://educacaointegral.org.br/na-pratica/>. Último acesso em 06/02/2018.
__________________________________________________________. “Jogo da Mandala dos Saberes”. 2016. Disponível em: <http://educacaointegral.org.br/na-pratica/wp-content/uploads/2017/08/metodologia-complementar_jogo-mandala-dos-saberes.pdf>. Último acesso em 06/02/2018.
CLAPP, Edward P. et al. Maker-centered learning: Empowering young people to shape their worlds. Jossey-Bass: San Francisco: 2016.
COLLOT, Bernard; CHANCEREL, Jean-Louis. “Presentation theorique et methodologique des ´Arbres de Connaissance´”. Diponível em: <http://p.birbandt.free.fr/FICHIERS-LOURDS/ARBRESCONNAISSANCEchancerel-collot.doc.>. último acesso em: 05/02/2018.
ProjectZero. Visible Thinking Project. Disponível em: <http://www.visiblethinkingpz.org/VisibleThinking_html_files/VisibleThinking1.html>. último acesso em: 05/02/2018.
RESNICK, Mitchel. Lifelong Kindergarten: Cultivating Creativity Through Projects, Passion, Peers, and Play. MIT Press, 2017.
RITCHHART, Ron; CHURCH, Mark; MORRISON, Karin. Making thinking visible: How to promote engagement, understanding, and independence for all learners. San Francisco: Jossay-Bass, 2011.
SCATE Project. “Handbook on Trees of Knowledge”. Socrates Programme of the European Union/ Grundtvig Action/Província de Genova, out 2006. Disponível em:
<http://www.atene.it/scate/ing/allegati/Handbook-knowledge.pdf>. último acesso em: 05/02/2018.
SINGER, Helena. “A gestão democrática do conhecimento: sobre propostas transformadoras da estrutura escolar e suas implicações nas trajetórias dos estudantes”. Relatório de Pós Doutoramento. FAPESP/Laboratório de Estudos e Pesquisas em Ensino e Diversidade (LEPED) da Universidade de Campinas (Unicamp): São Paulo, 2009.